A serpente interior

Você espera normalmente encontrar um pedaço de mamífero, um roedor, algum cervo e até mesmo uma vaca dentro de uma serpente, mas achar um pedaço de uma serpente dentro de uma vaca, isso é algo que você nunca esperaria encontrar! Mas foi exatamente isso que aconteceu ao longo da evolução, só que os pedaços que estamos falando pertencem aos genes de uma familia de víboras, a Viperidae que de alguma forma foram parar dentro do genoma não somente das vacas, mas de todos os mamíferos da ordem dos Ruminantia, que inclui, vacas, cervos, bodes, girafas entre outros.


Em 1997, Dusan Kordis e Franc Gubensek em pesquisas com o gene Ammodytin L que é expresso nas glândulas de veneno da serpente Vipera ammodytes, encontraram o retrotransposon ( sequências de genes que se autocopiam via transcriptase reversa para RNA e depois para DNA se integrando no genoma do hospedeiro), ART-2 que era especifico de ruminantes, denominado de Bov-B LINE numa das regiões do intron desse gene. E ai que vem a pergunta, como esse retrotransposon foi parar lá? ou será que originalmente o gene pertencia às serpentes? ou todos os vertebrados possuem esse gene?
A resposta veio após a análise filogenética da distribuição desse elemento, realizada na época, que mostrou claramente que além dos Ruminantia, ele estava presente somente na família Viperidae de serpentes, o que podia indicar mais um caso de transferência horizontal , devido a descontinuidade na história desse gene e das distâncias genéticas desses dois grupos, e isso aconteceu em um a escala de tempo aproximadamente recente, em torno de 5 milhões de anos. Mas em artigo de 1998, os mesmos pesquisadores estenderam sua busca em diversos vertebrados, invertebrados e em algumas espécies de plantas, para confirmar se realmente houve o fenômeno da transmissão horizontal, e se somente estes dois grupos de vertebrados possuíam o BOV-B LINE e chegaram ao consenso que o elemento residia no intímo do material genético que compõe a ordem Squamata (= escamados, serpentes, lagartos e anfisbenias) e a amplificação do Bov-B LINE provavelmente ocorreu durante a era Mesozóica ≈140–210 milhões de anos, no ancestral desse grupo, confirmando a possibilidade da transmissão para o ancestral dos Ruminantia há aproximadamente 50 milhões de anos atrás, durante o Eoceno, e mantida na linhagem por transferência vertical.
A estranheza destas descobertas, que fazem parte do papel desse fenômeno na evolução, é real, eu e você compartilhamos isso, mas o montante de evidências a favor dessa visão da história das espécies cada vez ganha mais corpo. É o que descobriremos nas últimas postagens dessa grande história evolucionária, da promiscuidade molecular entre as espécies. Então, sigam-me os bons...

Referências:

Kordis, D., & Gubensek, F. (1997). Bov-B Long Interspersed Repeated DNA (LINE) Sequences are Present in Vipera Ammodytes Phospholipase A2 Genes and in Genomes of Viperidae Snakes European Journal of Biochemistry, 246 (3), 772-779 DOI: 10.1111/j.1432-1033.1997.00772.x

Kordis, D. (1998). Unusual horizontal transfer of a long interspersed nuclear element between distant vertebrate classes Proceedings of the National Academy of Sciences, 95 (18), 10704-10709 DOI: 10.1073/pnas.95.18.10704


Imagem: daqui

Navegar é preciso: A rima do elemento Mariner

No ano de 1986, a equipe liderada por J.W Jacobson, isolou um novo elemento transponível , o Mariner, retirado de um mutante de Drosophila mauritiana de olhos brancos, cujo a mutação foi denominada de peach (pêssego). O elemento recebeu esse nome em referência ao antigo poema "The Rime of the Ancient Mariner" do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, que fala sobre um velho marinheiro que se perde em suas navegações e que passa por eventos sobrenaturais.
Esse elemento transponível é provavelmente o mais difundido entre os seres vivos, sendo encontrado na maioria dos insetos, crustáceos, aracnídeos e até mesmo no genoma humano, onde é possível encontrar o Hsmar1 fusionado a uma proteína, e em torno de ~1000 cópias do Hsmar2
( Homo sapiens mariner 2), localizado no cromossomo 17. Pesquisas recentes apontam para uma relação com doenças humanas como a Charcot-Marie-Tooth.

A transferência horizontal desse elemento possui fortes evidências de ter ocorrido em diversas espécies, como entre a mosca de chifres Hematobia irritans e o mosquito Anopheles gambiae, que divergiram evolutivamente a 200 milhões de anos atrás e que possuem 90% de identidade similar do elemento. Uma possível transferência horizontal de mariner também foi identificada entre a vespa parasitóide Ascogaster reticulatus e sua larva hospedeira, a Adoxophyes honmai, contendo similarididade de 97.6% e não sendo identificado em espécies próximas a esses grupos.


Um acontecimento importante na nossa evolução, dos primatas, foi a possível fusão entre a histona metiltransferase SET com uma enzima (transposase) de um elemento mariner o Hsmar1, que deu origem a um gene quimérico do grupo dos primatas, o SETMAR, num evento que deve ter ocorrido há 40–58 milhões de anos atrás.
Esses elementos também foram encontrados em planárias, nas hydras e em morcegos, o que torna o transposon Mariner um dos melhores navegadores do "oceano genético" que circunda a todos nós.

Referências:

Cordaux, R., S. Udit, M. A. Batzer, and C. Feschotte. 2006. Birth of a chimeric primate gene by capture of the transposase gene from a mobile element. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 103:8101-8106

Mikio Yoshiyama, Zhijian Tu, Youichi Kainoh, Hiroshi Honda, Toshio Shono, and Kiyoshi Kimura: Possible Horizontal Transfer of a Transposable Element from Host to Parasitoid Mol Biol Evol 2001 18: 1952-1958

Liehr, Thomas: Localization of mariner DNA Transposons in the Human Genome by PRINS Genome Res. September 1, 1999 9: 839-843; doi:10.1101/gr.9.9.839

Imagens: Gustave Doré Art Prints . Uma curiosidade sobre Gustave Doré é que ele ilustrou a divina comédia de Dante e o Paradise Lost de John Milton.